No dia da promulgação da Constituição Cidadã, o deputado Ulysses Guimarães reconheceu que a Carta não era perfeita, mas fez uma defesa apaixonada pela manutenção da democracia:
"Quanto a ela, discordar, sim. Divergir, sim.
Descumprir, jamais. Afrontá-la, nunca.
Traidor da Constituição é traidor da Pátria."
Ulysses Guimarães
Existem muitos temas que merecem ser debatidos e refletidos por todos nós para a construção de nossa sociedade, exatamente como ensina o professor Clémerson Merlin Cléve: "A consciência crítica da sociedade é a principal aliada dos direitos fundamentais em busca de cumprimento. A manutenção dessas conquistas depende de uma vigilância permanente, de uma prática constitucional compromissada e de um Judiciário independente. Estamos no bom caminho." *1
Eu concordo que precisamos ser vigilantes e que a consciência crítica da sociedade é a principal aliada dos direitos humanos porque uma vez que todos tenham conhecimento de seus direitos, poderão reivindicá-los, assim como se espera que todo cidadão, tendo conhecimento de seus deveres, também os exerça sem que precise que ser compelido a isso.
Entretanto, tenho minhas dúvidas sobre estarmos no bom caminho.... eu entendo que temos um longo e árduo caminho a percorrer para estarmos livres das mais absurdas violações dos direitos fundamentais, e quando afirmo isso, nem estou me referindo às atrocidades que ocorrem diariamente, mas pelas violações cometidas por aqueles órgãos que deveriam nos proteger, me refiro aos três Poderes.
Gostaria aqui de lembrar de um comentário do Professor Ives Gandra da Silva Martins, em uma de suas aulas no curso de pós-graduação em direito tributário e reproduzido em seu livro "Constituição Federal - Avanços, contribuições e modificações no processo democrático brasileiro", que "critica a postura assumida por determinadas autoridades dos Poderes Executivo, Legislativo, Judiciário e Ministério Público, de que todos são culpados, apenas que haja alguma suspeita, até que provem sua inocência."
Realmente é um absurdo e contraria totalmente a nossa Constituição!!!
Tendo em vista que atuo na área do direito tributário, é comum o embate entre os contribuintes e o fisco, contudo, sou obrigada a confessar que vivenciamos inúmeras violações constitucionais vindas exatamente daquele Poder que deveria cumprí-la com rigor: o Executivo, e sempre com o mesmo discurso: "existe uma Portaria X, uma Instrução Normativa Y, e mesmo que contrarie a Constituição, nós seguimos as nossas leis". Não posso concordar com isso, a Constituição é uma e deve ser seguida por todos, as demais leis, Instruções e Portarias devem seguir os mesmos princípios por ela ditados.
Aliás, já ouvi uma pérola da administração pública estadual: "Não adianta você requerer na esfera administrativa com fundamento na Constituição porque aqui dentro isso não funciona, aqui é mais na prática mesmo..." Dá para acreditar? Ainda bem que este agente já se aposentou, era uma aberração, faço votos de que ele não tenha influenciado muita gente...
Apenas para provocar a reflexão e o debate, saliento que no Estado de São Paulo, existe uma Portaria emitida pela Coordenadoria de Administração Tributária que determina a suspensão e até mesmo a cassação da inscrição estadual da empresa, e, somente após esse ato administrativo unilateral, possibilita o recurso, sem efeito suspensivo para que o contribuinte se manifeste e se defenda daquele ato que já o impossibilitou de desenvolver sua atividade empresarial...
Ora, como a Secretaria Estadual da Fazenda pretende cumprir o que determina a Constituição Federal em seu artigo 5º, inciso LV de assegurar o contraditório e a ampla defesa se já impossibilitou a empresa de desenvolver sua atividade empresarial, ou seja, já CONDENOU a empresa a fechar suas portas...
Infelizmente, a Receita Federal segue pelo mesmo caminho, pois existem inúmeras empresas que, por determinação de uma certa Instrução Normativa têm seu CNPJ suspenso ou cassado por um ato unilateral da administração fiscal, e, também somente após este ato, poderá recorrer administrativamente desta decisão...
A única alternativa que resta a estes contribuintes é buscar a tutela jurisdicional, que, na maioria das vezes, realmente cumpre o papel de ser o verdadeiro guardião da Constituição Federal, conforme podemos citar a decisão da Desembargadora Vera Angrisani em uma Apelação Cível n° 834.089.5/0-00, proveniente de Jales:
"(...) Acrescente-se que é permitida a cassação ou suspensão da inscrição da pessoa jurídica, a fim de impedir a atividade econômica ilícita. Não obstante, necessite de contraditório e ampla defesa, o que não se efetivou como bem assinalado nas próprias razões recursais (fls. 219). De certo que o Fisco possui o poder-dever de fiscalizar e tomar as medidas cabíveis, contudo, até aqui só se tem meras suspeitas e tais não podem impedir a atividade empresarial da impetrante por tempo indeterminado. (...)"
Por outro lado, também encontramos alguns magistrados (poucos, Graças a Deus) que não concedem medidas liminares para que a atividade da empresa transcorra normalmente até que sejam esgotadas as esferas administrativas e judiciais, para, em sentença (ou seja, após alguns anos), dar total provimento ao contribuinte!!! Quem ganhou a ação? Não existe mais contribuinte, lembram-se: o CNPJ já foi suspenso ou cassado!!!
O contribuinte não pode continuar sendo tratado como culpado ou bandido, ele paga impostos, taxas, contribuições sem fim, cumpre obrigações fiscais, trabalhistas, sanitárias, urbanísticas, ambientais, tudo lhe é imposto, o contribuinte sustenta o Estado, que, aliás, discursa a favor do empreendedorismo... Paradoxal, não?
Os problemas iniciam com a abertura da empresa, porque a legislação exige que a empresa já possua endereço para solicitar registro nos órgãos governamentais, contudo, no Brasil isso significa, de pronto, uma despesa de no mínimo 03 meses de aluguel, de portas fechadas, apenas para aguardar o registro nos referidos órgãos: Junta Comercial, Receita Federal, Secretaria da Fazenda e, quando necessário Prefeitura Municipal. Nos EUA esses registros, que também são obrigatórios para controle e fiscalização do Estado dura, no máximo, uma semana.
Para refletir: O bom empreendedor pode ser obrigado a fechar suas portas por um ato arbitrário fundado em Portaria ou Instrução Normativa e aquele que fica à margem da lei consegue prosperar, uma vez que seus clientes e fornecedores nunca lhe exigiram CNPJ ou inscrição estadual mesmo...
Na ânsia de encher os cofres públicos, estão atirando no próprio pé, ou, como diria o ditado popular: "estão matando a galinha dos ovos de ouro".
Espero que a experiência de cada um possa ampliar o debate sobre essa questão.
Abs a todos.
*1 - Revista "RT Informa" n. 55, ano IX, set/out, 2008.