sexta-feira, 26 de junho de 2009

INADIMPLÊNCIA: Uma das faces da crise econômica

À nossa volta, existe hoje uma espécie de evidência fantástica
do consumo e da abundância, criada pela multiplicação dos objectos
(...) Para falar com propriedade, os homens da opulência
não se encontram rodeados, como sempre acontecera,
por outros homens, mas mais por objectos.
Jean Baudrillard




Nas últimas semanas, acompanhamos diversas notícias sobre a inadimplência, em função da divulgação das pesquisas realizadas pela Serasa Experian, através de seus indicadores: “cheques sem fundos” e “Inadimplência pessoa jurídica” e essas pesquisas nos remetem a diversas reflexões.

A Serasa Experian divulgou que o indicador de Cheques Sem Fundos de maio bateu recorde histórico (desde 1991) no número de cheques devolvidos a cada mil compensados, porque destes, foram registradas 25,2 devoluções. *1

De acordo com os técnicos da Serasa Experian, sazonalmente, maio costuma registrar maior devolução de cheques em decorrência das vendas do Dia das Mães. Além disto, as compras parceladas da Páscoa e as despesas com os feriados prolongados do mês anterior também contribuíram para elevação da estatística de cheques devolvidos por falta de fundos no quinto mês do ano. *1

Apesar da elevação, os cheques sem fundos seguem ocupando a terceira posição no ranking de representatividade da inadimplência dos consumidores, atrás das dívidas com cartões de crédito e financeiras e das pendências com os bancos. *1

Entretanto, ao noticiar sobre a inadimplência, é necessário refletir sobre nossa sociedade que estimula o consumo, tanto que Jean Baudrillard se refere à "Sociedade de Consumo", onde as relações afetivas perderam lugar para as demonstrações de opulência, assim, quanto mais uma pessoa possuir os objetos de consumo, mais poder ela terá, será considerada "melhor"... Mas melhor em quê?

Ao retornar para casa hoje à noite, no elevador ouvi a conversa animada entre duas irmãs (por volta de seus 10 e 12 anos de idade) sobre o pai comprar um carro, mas, disse a mais nova, que se fosse feio ou velho ela se recusaria a ir para a escola com ele... São apenas crianças....

É certo que vivemos nessa Sociedade de Consumo, já tão bem definida por Baudrillard, assim como sou obrigada a concordar com Zygmunt Bauman, que as pessoas estão se transformando em mercadorias... Confesso que fiquei deprimida ao terminar de ler o livro "Vida para Consumo" e constatar essa triste realidade, mas acredito que podemos estabelecer e manter laços afetivos genuínos e não apenas por conveniência.

Essa questão nos conduz a pensar na possibilidade de consumirmos de maneira sustentável, conscientemente, e não induzidos pelo mercado. Será que é realmente possível? Vivemos num mercado altamente competitivo, deixaríamos de comprar "o objeto" que significa "sucesso profissional" ou deixaríamos de nos render aos pedidos de nossos filhos, sobrinhos e netinhos?

A organização WWF divulgou um relatório denominado Planeta Vivo 2008, preparado em conjunto com a Zoological Society, de Londres, e o Global Footprint Network que trata justamente dessa temática. *4

De acordo com o documento, o atual nível de consumo coloca em risco a futura prosperidade do planeta com impacto no custo de alimentos, água e energia. "Se a nossa demanda por recursos do planeta continuar a aumentar no mesmo ritmo, nos próximos 30 anos (década entre 2030 e 2040), nós precisaremos do equivalente a dois planetas para manter o nosso estilo de vida", disse o diretor da WWF International, James Leape. *4

O presidente internacional da WWF, Emeka Anyaoku afirmou que "A crise financeira global tem sido devastadora, mas não é nada comparado à recessão ecológica que estaremos enfrentando". *4

O Instituto Akatu procura difundir o consumo consciente, explicando que CONSUMIR implica em um processo de seis etapas. O mais comum é as pessoas associarem consumo a compras, mas essa é apenas uma etapa do consumo. Antes dela, temos que decidir o que consumir, por que consumir, como consumir e de quem consumir. Depois de refletir a respeito desses pontos é que partimos para a compra. E após a compra, existe o uso e o descarte do que foi adquirido. *5

Consumo consciente é consumir levando em consideração os impactos provocados pelo consumo, ou seja, o consumidor pode, por meio de suas escolhas, buscar maximizar os impactos positivos e minimizar os negativos dos seus atos de consumo, e desta forma contribuir com seu poder de consumo para construir um mundo melhor. *5

Desta forma, o consumo provoca diversos impactos. Primeiro em nós mesmos, já que temos que arcar com as despesas do consumo (vide a inadimplência) e também nos beneficiamos do bem estar derivado dele. Depois, o aspecto mais importante: o impacto na economia, porque ao adquirirmos algo, movimentamos a máquina de produção e distribuição (basta verificarmos todas as iniciativas do governo para aumentar o consumo: desde as linhas de crédito até a diminuição dos impostos). *5

Nesse aspecto, cabe observar a divulgação da Serasa Experian que a inadimplência das empresas brasileiras cresceu 27% no acumulado de janeiro a maio, na comparação com o mesmo período do ano passado. Contudo, apesar do aumento em comparação com o mesmo período do ano passado, esse levantamento demonstra uma desaceleração da inadimplência, o que sinaliza que o pior momento, em termos de inadimplência das pessoas jurídicas, parece ter ficado para trás, considerando os desdobramentos da crise financeira internacional. *2 e 3

Cabe uma nova reflexão, proposta por Bauman "O mercado de consumo de produtos, deve-se admitir, constitui soberano peculiar, bizarro, totalmente distinto daqueles que são conhecidos dos leitores dos tratados de ciência política. (...) que mina a soberania do Estado. (...) O Estado como um todo, incluindo seus braços jurídico e legislativo, torna-se um executor da soberania do mercado."

No Brasil, em 1999, Plauto Faraco de Azevedo já havia tratado dessa questão, em seu livro "Direito, Justiça e Neoliberalismo", sobre o perigo de termos o Estado como refém dos grandes conglomerados econômicos, afirmando que "Tudo é pensado a curto prazo (...), na busca do ganho imediato, no menor tempo possível, ainda às expensas da dignidade e solidariedade humanas, cuja perda não é vista como um problema. A miopia da lógica econômico-financeira menospreza a ética, não trepidando em exaurir recursos planetários indispensáveis à continuação da vida. (...) A responsabilidade do Império Americano na propagação e sustentação dessa ideologia é indubitável."

Realmente, os Estados Unidos provocaram a atual crise financeira mundial exatamente por não exercerem qualquer controle sobre as instituições financeiras...

O sociólogo Boaventura de Sousa Santos, antes da atual crise mundial financeira, já acreditava na falência desse atual sistema capitalista neoliberal, que tem o consumo como o centro de todas as ações individuais e governamentais. Ele afirmou, em 1995, que "é possível vislumbrar uma crise desse modelo, fundamentalmente ecológica, que vai determinar uma transformação social, conducente a outra forma de civilização. Os tempos mostram a necessidade da procura de um novo modelo de conhecimento - um modelo prudente para uma vida decente."


Eu penso que realmente precisamos encontrar uma nova forma de sociedade, de sistema, precisamos de equilíbrio, especialmente considerando o Relatório da WWF...
O consumo consciente e a sustentabilidade serão suficientes?

Qual sua opinião?

Abs a todos.


terça-feira, 2 de junho de 2009

Vigilância permanente da democracia

No dia da promulgação da Constituição Cidadã, o deputado Ulysses Guimarães reconheceu que a Carta não era perfeita, mas fez uma defesa apaixonada pela manutenção da democracia:

"Quanto a ela, discordar, sim. Divergir, sim.
Descumprir, jamais. Afrontá-la, nunca.
Traidor da Constituição é traidor da Pátria."
Ulysses Guimarães


Existem muitos temas que merecem ser debatidos e refletidos por todos nós para a construção de nossa sociedade, exatamente como ensina o professor Clémerson Merlin Cléve: "A consciência crítica da sociedade é a principal aliada dos direitos fundamentais em busca de cumprimento. A manutenção dessas conquistas depende de uma vigilância permanente, de uma prática constitucional compromissada e de um Judiciário independente. Estamos no bom caminho." *1

Eu concordo que precisamos ser vigilantes e que a consciência crítica da sociedade é a principal aliada dos direitos humanos porque uma vez que todos tenham conhecimento de seus direitos, poderão reivindicá-los, assim como se espera que todo cidadão, tendo conhecimento de seus deveres, também os exerça sem que precise que ser compelido a isso.

Entretanto, tenho minhas dúvidas sobre estarmos no bom caminho.... eu entendo que temos um longo e árduo caminho a percorrer para estarmos livres das mais absurdas violações dos direitos fundamentais, e quando afirmo isso, nem estou me referindo às atrocidades que ocorrem diariamente, mas pelas violações cometidas por aqueles órgãos que deveriam nos proteger, me refiro aos três Poderes.

Gostaria aqui de lembrar de um comentário do Professor Ives Gandra da Silva Martins, em uma de suas aulas no curso de pós-graduação em direito tributário e reproduzido em seu livro "Constituição Federal - Avanços, contribuições e modificações no processo democrático brasileiro", que "critica a postura assumida por determinadas autoridades dos Poderes Executivo, Legislativo, Judiciário e Ministério Público, de que todos são culpados, apenas que haja alguma suspeita, até que provem sua inocência."

Realmente é um absurdo e contraria totalmente a nossa Constituição!!!

Tendo em vista que atuo na área do direito tributário, é comum o embate entre os contribuintes e o fisco, contudo, sou obrigada a confessar que vivenciamos inúmeras violações constitucionais vindas exatamente daquele Poder que deveria cumprí-la com rigor: o Executivo, e sempre com o mesmo discurso: "existe uma Portaria X, uma Instrução Normativa Y, e mesmo que contrarie a Constituição, nós seguimos as nossas leis". Não posso concordar com isso, a Constituição é uma e deve ser seguida por todos, as demais leis, Instruções e Portarias devem seguir os mesmos princípios por ela ditados.

Aliás, já ouvi uma pérola da administração pública estadual: "Não adianta você requerer na esfera administrativa com fundamento na Constituição porque aqui dentro isso não funciona, aqui é mais na prática mesmo..." Dá para acreditar? Ainda bem que este agente já se aposentou, era uma aberração, faço votos de que ele não tenha influenciado muita gente...

Apenas para provocar a reflexão e o debate, saliento que no Estado de São Paulo, existe uma Portaria emitida pela Coordenadoria de Administração Tributária que determina a suspensão e até mesmo a cassação da inscrição estadual da empresa, e, somente após esse ato administrativo unilateral, possibilita o recurso, sem efeito suspensivo para que o contribuinte se manifeste e se defenda daquele ato que já o impossibilitou de desenvolver sua atividade empresarial...

Ora, como a Secretaria Estadual da Fazenda pretende cumprir o que determina a Constituição Federal em seu artigo 5º, inciso LV de assegurar o contraditório e a ampla defesa se já impossibilitou a empresa de desenvolver sua atividade empresarial, ou seja, já CONDENOU a empresa a fechar suas portas...

Infelizmente, a Receita Federal segue pelo mesmo caminho, pois existem inúmeras empresas que, por determinação de uma certa Instrução Normativa têm seu CNPJ suspenso ou cassado por um ato unilateral da administração fiscal, e, também somente após este ato, poderá recorrer administrativamente desta decisão...

A única alternativa que resta a estes contribuintes é buscar a tutela jurisdicional, que, na maioria das vezes, realmente cumpre o papel de ser o verdadeiro guardião da Constituição Federal, conforme podemos citar a decisão da Desembargadora Vera Angrisani em uma Apelação Cível n° 834.089.5/0-00, proveniente de Jales:

"(...) Acrescente-se que é permitida a cassação ou suspensão da inscrição da pessoa jurídica, a fim de impedir a atividade econômica ilícita. Não obstante, necessite de contraditório e ampla defesa, o que não se efetivou como bem assinalado nas próprias razões recursais (fls. 219). De certo que o Fisco possui o poder-dever de fiscalizar e tomar as medidas cabíveis, contudo, até aqui só se tem meras suspeitas e tais não podem impedir a atividade empresarial da impetrante por tempo indeterminado. (...)"

Por outro lado, também encontramos alguns magistrados (poucos, Graças a Deus) que não concedem medidas liminares para que a atividade da empresa transcorra normalmente até que sejam esgotadas as esferas administrativas e judiciais, para, em sentença (ou seja, após alguns anos), dar total provimento ao contribuinte!!! Quem ganhou a ação? Não existe mais contribuinte, lembram-se: o CNPJ já foi suspenso ou cassado!!!

O contribuinte não pode continuar sendo tratado como culpado ou bandido, ele paga impostos, taxas, contribuições sem fim, cumpre obrigações fiscais, trabalhistas, sanitárias, urbanísticas, ambientais, tudo lhe é imposto, o contribuinte sustenta o Estado, que, aliás, discursa a favor do empreendedorismo... Paradoxal, não?

Os problemas iniciam com a abertura da empresa, porque a legislação exige que a empresa já possua endereço para solicitar registro nos órgãos governamentais, contudo, no Brasil isso significa, de pronto, uma despesa de no mínimo 03 meses de aluguel, de portas fechadas, apenas para aguardar o registro nos referidos órgãos: Junta Comercial, Receita Federal, Secretaria da Fazenda e, quando necessário Prefeitura Municipal. Nos EUA esses registros, que também são obrigatórios para controle e fiscalização do Estado dura, no máximo, uma semana.

Para refletir: O bom empreendedor pode ser obrigado a fechar suas portas por um ato arbitrário fundado em Portaria ou Instrução Normativa e aquele que fica à margem da lei consegue prosperar, uma vez que seus clientes e fornecedores nunca lhe exigiram CNPJ ou inscrição estadual mesmo...

Na ânsia de encher os cofres públicos, estão atirando no próprio pé, ou, como diria o ditado popular: "estão matando a galinha dos ovos de ouro".

Espero que a experiência de cada um possa ampliar o debate sobre essa questão.

Abs a todos.



*1 - Revista "RT Informa" n. 55, ano IX, set/out, 2008.